“Vizinho,
Quem fala aqui é o
homem do 1003. Recebi outro dia, consternado, a visita do zelador, que
me mostrou a carta em que o senhor reclamava contra o barulho em meu
apartamento. Recebi depois a sua própria visita pessoal – devia ser
meia-noite – e a sua veemente reclamação verbal. Devo dizer que estou
desolado com tudo isso, e lhe dou inteira razão. O regulamento do prédio
é explícito e, se não o fosse, o senhor ainda teria ao seu lado a Lei e
a Polícia. Quem trabalha o dia inteiro tem direito a repouso noturno e é
impossível repousar no 903 quando há vozes, passos e músicas no 1003.
Ou melhor; é impossível ao 903 dormir quando o 1003 se agita; pois como
não sei o seu nome nem o senhor sabe o meu, ficamos reduzidos a ser dois
números, dois números empilhados entre dezenas de outros. Eu, 1003, me
limito a Leste pelo 1005, a Oeste pelo 1001, ao Sul pelo Oceano
Atlântico, ao Norte pelo 1004, ao alto pelo 1103 e embaixo pelo 903 –
que é o senhor. Todos esses números são comportados e silenciosos:
apenas eu e o Oceano Atlântico fazemos algum ruído e funcionamos fora
dos horários civis; nós dois apenas nos agitamos e bramimos ao sabor da
maré, dos ventos e da lua. Prometo sinceramente adotar, depois das 22
horas, de hoje em diante, um comportamento de manso lago azul. Prometo.
Quem vier à minha casa (perdão: ao meu número) será convidado a se
retirar às 21h45, e explicarei: o 903 precisa repousar das 22 às 7 pois
as 8h15 deve deixar o 783 para tomar o 109 que o levará ate o 527 de
outra rua, onde ele trabalha na sala 305. Nossa vida, vizinho, está toda
numerada: e reconheço que ela só pode ser tolerável quando um número
não incomoda outro número, mas o respeita, ficando dentro dos limites de
seus algarismos. Peço-lhe desculpas – e prometo silêncio.
[...] Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo, em que um homem batesse à porta do outro e dissesse: ‘Vizinho, são três horas da manhã e ouvi música em tua casa. Aqui estou’. E o outro respondesse: ‘Entra vizinho e come do meu pão e bebe do meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e a cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua é bela’.
E o homem trouxesse sua mulher, e os dois ficassem entre os amigos e amigas do vizinho entoando canções para agradecer a Deus o brilho das estrelas e o murmúrio da brisa nas árvores, e o dom da vida, e a amizade entre os humanos, e o amor e a paz.”
[...] Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo, em que um homem batesse à porta do outro e dissesse: ‘Vizinho, são três horas da manhã e ouvi música em tua casa. Aqui estou’. E o outro respondesse: ‘Entra vizinho e come do meu pão e bebe do meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e a cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua é bela’.
E o homem trouxesse sua mulher, e os dois ficassem entre os amigos e amigas do vizinho entoando canções para agradecer a Deus o brilho das estrelas e o murmúrio da brisa nas árvores, e o dom da vida, e a amizade entre os humanos, e o amor e a paz.”
(Rubem Braga. "Para gostar de ler". São Paulo: Ática, 1991)
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